A ARTE DE SEMEAR IDÉIAS
PLÍNIO SALGADO
A Arte de Semear Idéias é uma arte difícil. Não pelo que exige em
qualidades de ação, mas principalmente pelo que reclama em virtudes de
resistência.
Não é somente escrevendo e publicando livros, redigindo e estampando
artigos nos jornais, subindo à tribuna e proferindo discursos, nem lecionando
ou simplesmente conversando, que se consegue semear idéias capazes de germinar.
Tudo isso é preciso, não há dúvida, mas tudo isso nada vale, se o
semeador não possui aquela indispensável energia interior com que a si mesmo
vence em cada hora de desânimo, diante da incompreensão, ou da indiferença, ou
da injustiça.
Essa resistência, em cada minuto de sua vida, é que constitui o húmus
alimentador e vivificador das idéias semeadas. Sim; essa resistência é que
determina a continuidade, a permanência, a fidelidade que são os fatores
operantes nos processos da germinação das idéias.
Porque o grande drama dos portadores de idéias novas consiste
justamente no contraste entre estas e a realidade humana, que é o solo onde o
semeador deita a sementeira.
Tudo conspira contra aquele que traz algo novo. Entre os adversários
que se mobilizam, tem ele de contar com as idéias velhas, que ressuscitam
pretendendo ser mais novas, mais oportunas, mais conforme o tempo
transcorrente.
Não encontrando no Presente nada capaz de amesquinhar ou destruir o
Pensamento que se antecipa aos dias em que surge; os medíocres procuram nas
sombras do Passado elementos com que opor-se aos Renovadores, aos propositores de
soluções novas. Com tais elementos, proclamam que a idéia nova foi superada.
O verdadeiro Missionário de idéias percebe claramente o truque desses
falsificadores e não se perturba na marcha que se propôs de um apostolado
irredutível.
Para isso é preciso um grande poder sobre si mesmo, pois todas as
aparências trabalham contra ele. Essa força interior provém de íntima certeza,
de uma convicção. Mas para haver convicção é mister que o Semeador não seja
apenas o portador de idéias, mas seja, principalmente, o portador de uma crença
profunda.
Os que não acreditam nas idéias que pregam não resistirão à onda das
aparências enganadoras, não se conservarão firmes e inexpugnáveis em face da
conjuração e dos expedientes dos medíocres. Deixar-se-ão influenciar por estes,
entrando primeiro na dúvida, depois no desânimo, finalmente no ceticismo. E
perderão a batalha.
Perderão, porque a batalha já estava perdida antes de ser travada. O
pretendido semeador era indeciso, a sua mão tímida e trêmula, a sua palavra
insegura e dubitativa.
Quando saiu a campo, não se blindou contra as influências estranhas;
de sorte que, à leitura do primeiro livro de grande sucesso lançado pela
mediocridade contemporânea, a sua fé em si mesmo abalou-se. Ficou à mercê da
imensa fauna dos oradores oportunistas e dos artigos e notícias da imprensa
quotidiana. Os falsos êxitos, os retumbantes aplausos, que coroam os vitoriosos
do momento em seus efêmeros triunfos, impressionam o homem fraco, o apóstolo
sem fibra, o tímido predicador sem confiança naquilo que ele chama inicialmente
“a verdade” e que mais tarde chamará “a doutrina superada”.
No entanto, o contraste principal, que cria a tragédia de todos os
lutadores apostolizantes, encontra-se exatamente naqueles motivos que atestam a
autenticidade do “novo” em face do “velho”.
A idéia nova precisa de homens novos. Para isso, ela necessita, antes
de tudo, transformar-se em
sentimento. O sentimento produz os atos, ou séries de atos,
em que se manifestam e se afirmam as personalidades novas.
Quando a idéia se transforma em sentimento, estabelece-se no que foi
inicialmente seu “objeto” e depois se fez “sujeito” operante, a linha nítida da
conduta. A manutenção dessa linha depende, entretanto, da própria força do
sentimento, na sucessividade das emoções, cujo ritmo se exprime naquele
constante fervor da paixão criadora.
A progressão crescente parte do termo “idéia”, ascende ao termo
“sentimento”, atinge o termo “paixão”. A semente chega, então, ao ponto de
desenvolvimento sem o qual não germina.
E não germina porque só a paixão da idéia, isto é, a continuidade das
emoções sentimentais, traz consigo a energia seminal fecundadora. O pregador
crê no que prega; a sua palavra transmite o gérmen, a centelha vital.
Quando o pregador tornou-se autêntico semeador, operou em si mesmo a
superação de todas as forças negativas e esterilizadoras. Conhece-se quando tal
acontece, não já pelas palavras que o semeador profere, mas pelos atos que
pratica.
Os atos identificadores da autenticidade do apóstolo revelam, um por
um, a persistência. Mas, justamente porque o processo da transformação da idéia
em sentimento e do sentimento em paixão apostolar se opera, de pessoa a pessoa,
em ritmos variáveis, aquele que se fez propagador, difundidor de idéias novas
sofre a grande amargura cotidiana das decepções sem número.
São momentos perigosos na vida do semeador. É o choque entre todas as
forças do “velho” contra a audácia do “novo”. O pioneiro do Futuro amarga a
imensa dor de verificar que, entre aqueles que marcham com ele, e até mesmo
entre aqueles que se dizem vanguardeiros na maravilhosa aventura, manifestam
toda a espécie de fraquezas, de incapacidade para enfrentar os momentos
difíceis, de impotência no sentido de viver o sonho magnífico posto na linha do
horizonte desejado.
A semeadura, pouco a pouco, no transcurso dos acontecimentos,
tornou-se marcha. As mãos atiram a semente à terra; as pernas prosseguem, para
diante, sempre para diante.
Mas há os que se cansam. Há os que param no meio do campo, a
contemplar o terreno percorrido e, além deste, para trás, muito para trás, o
terreno percorrido por outros, por outras gerações, segundo outro sentido de
vida e de realidades. Nesse horizonte pretérito, erguem-se os vultos dos que
apontam para a frente e parecem dizer aos caminhantes que não olhem para eles,
pois cada geração tem o seu destino próprio; mas há também os vultos dos que
viveram segundo o Presente que lhes pertenceu e não segundo o Porvir, que nos
pertence, e estes, em vez de nos mandar marchar para diante, convidam-nos a regressar
ou a extasiar-se na contemplação estática do que eles foram, do que eles
fizeram.
E há também os que se iludem com as falsas aparências de uma realidade
que não é realidade; capitulam em face dos êxitos ocasionais dos medíocres;
entregam-se ao domínio dos cartazes e das frases feitas, que constituem, em
última análise, as páginas dos doutrinadores de ocasião, dos mágicos de feiras,
em torno de cujas palavras se conglomera a clientela bestificada dos
“best-sellers” e dos auditórios dos comícios.
E há, ainda, os que pretendem o absurdo que consiste em querer que a
idéia nova viva efetivamente uma vida atual, esquecendo-se de que nesse caso
ela deixaria de ser nova. Esses revoltam-se, porque o seu generoso pensamento,
a sua nobre doutrina, o seu elevado sentimento só encontra possibilidade de
vida em poucos, em alguns, e não na maioria dos próprios companheiros de ideal.
Tornam-se céticos, mordendo-lhes o coração o íntimo desejo de abandonar a luta.
E muitos a abandonam, dizendo: são muito poucos aqueles que realmente me
compreendem.
Incorrem dessa forma, no maior dos erros, que é desconsiderar o valor
das idéias que outrora foram novas e que, tendo-se transformado em fatos
sociais, persistem, pela lei da inércia, e persistirão longo tempo,
utilizando-se de todos os expedientes do “falso novo” para a manutenção do
velho. Não raciocinam para concluir que justamente por ser nova, a nova idéia
terá que colocar o seu objetivo no Futuro. Não percebem que toda idéia nova é
uma batalha contra o Presente. Do Pretérito, ou da Atualidade, ela toma
unicamente os valores eternos, que pertencem também ao Futuro. Mas os “valores
eternos” não são os “valores visíveis”, ou o cortejo das aparências e as
estruturas de superfície.
No meio de todas as confusões, de todos os fracos e desorientados,
sofrendo a injustiça dos adversários e a injustiça dos seus próprios
colaboradores, o Semeador terá de continuar. Impassivelmente. Serenamente.
Irredutivelmente.
E deverá ter em vista que o verdadeiro missionário de idéias não é aquele
que apenas escreve livros no conforto dos gabinetes, ou redige artigos de
imprensa sobre os fatos do dia, ou lavra pareceres, ou compõe ensaios,
prefácios ou conferências, mediante temas de ocasião, ou vai discursar na praça
pública somente quando chega o tempo das campanhas eleitorais ou das campanhas
relacionadas com acontecimentos ou problemas que ocorrem periodicamente. O
verdadeiro missionário de idéias não conhece a pausa das férias parlamentares,
os intervalos das propagandas à boca das urnas, a intercadência feliz dos
repousos reconfortantes. Mas, ao contrário, prega constantemente, em todos os
dias da sua vida; anda de cidade em cidade, sem pausa nem descanso; escreve
para jornais e escreve livros; procura dar concatenação lógica às idéias, estruturando
um corpo de doutrina; e – o que é mais importante – sacrifica-se anos após
anos, em continuidade efetiva, resistindo não apenas às injustiças adversárias,
que são explicáveis e plenamente justificáveis, por exprimirem a natural reação
das idéias velhas. Mas também às injustiças daqueles mesmos que julgam
segui-lo, ou que sabem, no íntimo, que não o seguem, fingindo apenas segui-lo.
Essa resistência, essa capacidade para compreender e perdoar, essa
energia na manutenção dos propósitos, esta linha imperturbável de marcha, tudo
isso consiste a grande arte de semear idéias.
A arte de semear idéias é sem dúvida, uma arte difícil. Mas, por isso
mesmo, é bela. Que a juventude da nossa Pátria saiba praticá-la. E poderemos
ter confiança no Futuro.
(Plínio Salgado, “Reconstrução
do Homem” – 3ª edição – São Paulo – Voz do Oeste – 1983 – 180 págs;
transcrito integralmente da pág. 51 até 56)
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