"Tolerância e apatia são as últimas 'virtudes' de uma sociedade moribunda". - Aristóteles.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente estudo tem por objetivo preencher a lacuna deixada pelo
status quo vigente, com inteligibilidade de ínclitos pensadores, vivos
ou mortos. Iremos explanar, por meio da iluminação platônica ou
husserliana (entendida aqui, metaforicamente), os problemas centrais da
democracia, dos direitos humanos e da racionalidade prática da
modernidade caída.
Ademais, direta ou indiretamente, os problemas centrais nesses temas
sempre estão relacionados aos conceitos de 'universalidade',
'neutralidade', 'igualdade', 'vontade' e 'razão', a saber: os conceitos
abstratos que fundamentam as ações beligerantes do imperialismo
contemporâneo. Destarte, autores como Alain de Benoist, Aleksandr Dugin,
Alasdair MacIntyre, Slavoj Žižek, René Guénon, Julius Evola, dentre
outros, trabalharam incessantemente, tanto aprioristicamente quanto na
práxis, em combater tais abstrações inúteis.
No limiar do Kali Yuga (Guénon e Savitri Devi), ou mesmo na decadência
que tem como resultado; premissas compostas por simulacros de moralidade
(MacIntyre), onde o dominador falseia a realidade ao seu interesse
(Žižek), teremos como proposta, a superação dos paradigmas modernos
(Aleksandr Dugin). Destarte, o estudo é além de tudo uma ação de
contribuição teleológica para um fim em comum na luta contra o mundo
moderno.
A PROPÓSITO DOS DIREITOS HUMANOS
1. Genealogia do indivíduo
É impossível falar de direitos humanos sem mencionar o nascimento do
indivíduo. E, para entendermos melhor os fundamentos teológicos e
filosóficos do indivíduo, me valerei de partes da obra Para Além dos
Direitos Humanos de Alain de Benoist, onde há uma genealogia clara da
individualidade ao longo da história, em seu desenvolvimento filosófico e
metafísico ao ponto culminante na modernidade.
Ademais, o cristianismo, segundo De Benoist, difere de outras religiões
europeias em muitos aspectos, mas a diferença substancialmente relevante
nessa genealogia pertine à concepção de salvação, e no fato de que tal
salvação possui natureza individual. A ideia de um Deus único, regente a
todos, pressupõe uma comunidade universal e igualitária. Santo
Agostinho foi muito importante para a fundamentação desse princípio de
salvação individual, no que concerne à sistematização teológica: de que a
via de acesso entre o homem e Deus acontece por meio da interioridade;
ou seja, a importância da interioridade é indispensável para a
compreensão do cristianismo e das tradições filosóficas futuras, como o
cartesianismo. (1)
Outro aspecto importante nessa mudança filosófica é o conceito de amor
(ágape) no cristianismo. Essa mudança no conceito (pretensamente
universal), foi um enquadramento, por assim dizer, no sentido da "tomada
do cosmo" (se é que nos permitem esse termo) do que já está no mundo.
"O ágape - continua Alain de Benoist - já anuncia a ideia moderna de
Benevolência: todos os seres humanos devem ser tratados com um respeito
igual ao que sua dignidade lhe dá direito" (De Benoist, Alain, pag. 22).
Portanto, essa mudança radical na compreensão do amor irá afetar
bastante a ética moderna na sua busca incessante de afirmação duma
moral, desde Kant a John Rawls. (2)
O cristianismo, como religião universal de uma comunidade que engloba
toda a humanidade, não tinha o estabelecimento de um funcionamento desta
humanidade. É ai que surge, com a Escolástica, a ética
aristótelico-tomista como fundamento do bem comum. Além disso, outra
passagem histórica importante foi o surgimento da Escola nominalista,
precisamente com Guilherme de Ockham, segundo o qual o Ser é 'singular',
e nada mais existe além do singular, assim como nos seus escritos
políticos, onde só existem indivíduos. Outra discussão importante do
Padre Ockham, tese reafirmada por ele próprio, refere-se ao direito de
propriedade para os franciscanos, que tinham feito voto de pobreza. As
teses filosóficas e teológicas de Ockham tiveram, outrossim, importância
significativa na Escola de Salamanca, notavelmente na mudança radical
do conceito de 'Ordem divina' para 'Vontade divina' no direito natural.
(3)
No século XVI, pela influência dos dois principais representantes da
Escola de Salamanca, Francisco de Vitória e Francisco Suárez, a teologia
escolástica passa de uma noção de direito natural objetivo,
fundamentado na natureza das coisas, a uma noção de direito subjetivo,
fundamentados na razão individual. Enquanto afirma a unidade política do
gênero humano, o jesuíta Francisco Suárez declara que o fato social e
político não se explicitaria pela pura inclinação natural em uma direção
sociabilidade: falta um ato de vontade dos homens e um acordo de suas
vontades (a mesma ideia será retoma por Pufendord). Francisco de Vitória
acrescenta que "o direito das gentes é o que a razão natural
estabeleceu entre todos os povos". O direito se torna, então, sinônimos
de uma faculdade individual conferida pela lei moral, com um poder moral
para fazer. Com o direito subjetivo - assinala Michel Villey - o
indivíduo se transforma "no centro e origem do universos" (De Benoist, Alain, p23).
Essa virada metafísica na moralidade, no direito e na filosofia, viria a
ser muito importante para os filósofos contractualistas, como Hobbes,
Locke e Rousseau. Hobbes irá beber muito na fonte da razão natural de
Francisco de Vitória, assim como Locke. A título de exemplificação,
evocamos um excerto da obra Levitã feita por De Benoist, com o escopo de
aclarar tal influência: "O direito natural é a liberdade que cada qual
tem de utilizar seu próprio poder" (HOBBES, Thomas, capítulo 14). Isto
é, o direito outrora objetivo demandado do cosmos extrinsecamente,
declinou-se para o direito natural subjetivo moderno, onde tudo é
deduzível do sujeito. O mesmo se verifica em Locke, segundo o qual o
homem é um ser calculista. (4)
Uma passagem importante que ilustra muito bem isso é extraída do livro
Sources of the Self: The Making of Modern Identity do filosofo
comunitarista Charles Taylor.
Anteriormente se havia formulado este direito quando se dizia existir
uma lei natural que proibia atentar contra uma vida inocente. Ambas as
formulações parecem proibir as mesmas coisas. Porém, a diferença não
reside tanto na proibição como no lugar que ocupa o sujeito. A lei é a
quem devo obedecer. Pode me conferir certas vantagens e, em último,
caso, a imunidade que assegura que minha vida, igualmente, deva ser
respeitada. contudo, estou fundamentalmente submetido à lei. Em vez, um
direito subjetivo é aquele cujo o titular pode e deve exercê-lo para
atualizar. (5)
Todo desenvolvimento na criação do indivíduo perpassa e subjaz a
metafísica da subjetividade e seu aparecimento sistemático e
problemático. Primeiro com Descartes, o Cogito ergo sum 'Penso logo
existo' como verdade indubitável, dá efeito na separação sujeito-objeto,
assim como o poder avassalador da Reforma Protestante, com Lutero e
Calvino e sua importância na separação de natureza e cultura na religião
cristã. Além disso, Kant foi, também, muito importante para a
veracidade do 'Eu': "O eu penso tem de poder acompanhar todas as minhas
representações; pois do contrário, seria em mim algo que não poderia de
modo algum ser pensado, o que equivale a dizer que a representação seria
impossível ou, pelo menos para mim, não seria nada". (6)
Por outro lado, a contribuição de Kant para a filosofia política moderna
não cessa nas obras críticas, mas em seus pensamentos anteriores. As
grandes perguntas que deram a ideia para suas obras críticas: 'O que
posso conhecer?' (Crítica da Razão Pura), 'O que devo fazer?' (Crítica
da Razão Prática) e 'O que eu devo esperar?' (Crítica da Faculdade de
Julgar) termina com uma pergunta muito importante, que o pensador
pós-estruturalista Michel Foucault, e outros, vão investigar
filosoficamente acerca do nascimento das Ciências Humanas, que é 'O que é
o homem?'. Nessa questão, Kant atribui status epistêmico ao homem. Esse
homem, como objeto do conhecimento, vai, sem sombra de dúvidas, ser o
ponto alto da consideração do século das Luzes e da Revolução Francesa;
em atribuir ficções constitucionais de direitos inatos ao homem, em sua
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
2. Direito e Moral.
Em um elogio à cultura indo-europeia, Alain de Benoist escreve aquilo
que o Ocidente trouxe de melhor para o mundo: a objetividade. A saída da
objetividade se deu, também, no processo da metafísica da
subjetividade. Tudo aquilo que outrora era objetivo, no bem comum, ou
mesmo na distribuição do direito objetivo, sem o enquadramento moralista
que ganhou na modernidade, foi abandonado no desenvolvimento e
fundamentação da abstração do direito individual. "A declaração de
direitos (humanos) não são declarações de amor, são, melhor, declaração
de guerra". (7)
Ademais, o universalismo dos direitos humanos é uma máquina de guerra em
sua imposição de doutrina contra todas as tradições no mundo, assim,
questionar esses direitos equivale a questionar a existência de Deus na
era medieval. Segundo Alain de Benoist, os direitos humanos são um dogma
religioso, assim como qualquer outro. Uma doutrina que instrumentaliza a
tolerância para praticar intolerância demasiada bélica e universalista.
A ideologia dos direitos definiu classicamente "direitos humanos"
como direitos inatos, inerentes à natureza humana, dos quais todo homem é
portador desde o estado 'estado de natureza', a saber, antes de
qualquer relação social (De Benoist, Alain, p. 17).
Por conseguinte, a doutrina dos direitos humanos se fundamenta em um
inatismo abstrato, isto é, o homem detém direito desde o nascimento,
direitos subjetivos que veem junto com ele. Há uma diferença demasiada
entre essa concepção de direito subjetivo com o direito objetivo de
herança greco-romana, ou como De Benoist denomina: "direito natural
clássico". O direito natural clássico, a saber, servia para manter uma
equidade entre as partes em relação ao bem comum nas comunidades; a
justiça no mundo antigo era de menos direito possível. (8)
Ademais, essa passagem importante que distingue o direito natural
clássico do direito subjetivo, lembra muito a obra Considerações sobre a
França de Joseph de Maistre, onde, há uma crítica feroz à Revolução
Francesa (1789-1799) e uma inauguração da tradição contrarrevolucionária
europeia em reação às trágicas mudanças morais e políticas da
modernidade. Maistre, nessa obra, faz um diagnóstico profético acerca
das nulidades das constituições modernas depois da revolução na França,
análise esta que se concretizou como profecia nos séculos subsequentes:
A constituição de 1795, como suas predecessor as, foi feita para o
homem. Mas não existe no mundo nada que se posso chamar de homem. Ao
longo de minha vida, tenho visto franceses, italianos, russos, etc.; sei
também, graças a Montesquieu, que se pode ser persa. Mas, quanto ao
homem, afirmo, que em toda minha vida, jamais o encontrei; se ele
existe, desconheço-o completamente.
Existe um único lugar do mundo onde não se possa encontrar um
Conselho dos Quinhentos, um Conselho dos Anciões e cinco Diretores?
Pode-se propor essa constituição a todas as associações humanas, da
China até Genebra. Mas uma Constituição que é feita para todas as
nações, não é feita para nenhuma: é uma pura abstração, uma obra
escolástica feita para exercitar o espírito, partindo de uma hipótese
ideal, e que está destinada ao homem, nos espaços imaginário em que
habita.
O que é uma constituição? Não é a solução dos seguintes problema?
Dados a população, os costumes, a religião, a situação geográfica, as
relações políticas, as riquezas, os bons e maus costumes atribuídos de
uma determinada nação, encontra leis que lhe convenham.
Porém, esse problema nem sequer foi abordado na Constituição de 1795, que só conseguiu pensar no homem.
Portanto, todas as razões imagináveis concertam-se para estabelecer
que o cunho divinos está ausente nessa obra. Trata-se somente de um
tema.
Em virtude disso, já nesse momento, quantos sinais de caducidade! (9)
Com efeito, nesta passagem escrita por Maistre, fica claro que esse
fracasso não se limita à Revolução Francesa, mas se expande no
desenrolar da modernidade e na busca ininterrupta pela justificação da
moral, como bem lembrado pelo filosofo aristotélico Alasdair MacIntyre
em seu livro polêmico After Virtue. Nesta obra, o pensador escocês
defende a tese de que a moralidade não existe, a não ser de maneira
fragmentária ou simulada como premissas para conclusões absurdas e
abstratas na afirmação duma moral racional. Outro aspecto interessante
da obra é o diagnóstico do debate infinito e inconclusivo acerca de
diversas morais racionais, a saber: é falho pensar em um consenso no
debate ético-moral contemporâneo entre premissas e conclusões distintas:
"[...] as premissas adversárias são tais que não temos meios racionais
de solapar as afirmações uma com a outra..."(MACINTYRE, Alasdair, p.
24).
Não obstante, o caráter anti-histórico das éticas contemporâneas e a
falta da impessoalidade se torna cada vez mais visível no processo
gradual do fracasso. Segundo MacIntyre, uma teoria moral importante na
contemporaneidade é o emotivismo. Assim, essa teoria moral parte da
premissa de que toda frase ética pressupõe uma prática. Por exemplo, a
premissa "Isto é bom!" já pressupõe um imperativo: "Eu aprovo; aprove
também", segundo um dos mais notáveis autores da metaética emotivista,
C. L. Stevenson. Em contraste com Stevenson, MacIntyre afirma que o
emotivismo errou em querer ser uma teoria dos significados, criando um
circulo vazio. (10)
Ademais, para MacIntyre, no começo do século XX o filosofo analítico G.
E. Moore pensou algo semelhante ao emotivismo em sua obra prima
Principia Ethica; o 'bem' passou a ser uma propriedade, assim como o
'amarelo', isto é, um status antinatural. Em seguida, dizer que um ato é
certo, é o mesmo que dizer que dos atos alternativos e disponíveis se
produz o maior bem. Portanto, a teoria ética de Moore já antecedeu o
emotivismo, até mesmo porque a contemporaneidade, em todo o seu
fracasso, abraçou, de modo subjacente, o emotivismo, que pode, talvez,
ser análogo à metafísica da subjetividade. Em suma, o 'Eu' emotivista é
semelhante ao 'Eu' sartriano; isto é, o 'Eu' não substancial, mas como
campo de possibilidades, o nada. (11)
Antes de tudo, o projeto iluminista de justificação da moral deu um
passo largo para o declínio até alcançar o emotivismo. Em virtude disso,
MacIntyre explora o desenvolvimento dessa justificação da moral pelos
autores do século XVII e XVIII. No norte da Europa esse processo foi
mais avassalador do que na própria França das Luzes. Um autor muito
importante e analisado pelo pensador escocês é o teólogo Søren
Kierkegaard, principalmente em sua obra Ou-Ou de herança kantiana, que
se opõe frontalmente ao hegelianismo. Assim, na obra de Kierkegaard há
uma característica de decisão na escolha entre dois caminhos: o ético ou
o estético. Para MacIntyre, o caminho ético é o compromisso eterno,
enquanto o estético está comprometido com ações imediatas de prazer
(semelhante à ética utilitarista, se é que nos permitem). Contudo, o
ético está além da razão, em subsunção exclusiva a princípios que podem
ser impessoais. Entretanto, o caráter ambíguo do pensamento de
Kierkegaard prejudica a fundamentação dessa afirmação ético-moral. (12)
Além disso, para MacIntyre, Kierkegaard é herdeiro do fracasso kantiano
de afirmar a moral racional eliminando os princípios de felicidade e de
impessoalidade religiosa; mas Kant, na Crítica da Razão Prática, faz uma
autocrítica por ter excluído o aspecto teleológico de sua ética.
Ademais, assim como Kierkegaard é herdeiro do fracasso kantiano, Kant é
herdeiro do fracasso de Hume, Adam Smith e Diderot em suas buscas pela
justificação da moralidade. Hume e Diderot perfilham este entendimento a
partir das paixões, Kant pela razão e Kierkegaard, não descartando
também as paixões da alma, procura ultrapassar a razão kantiana.
Destarte, segundo MacIntyre, a ética aristotélica pensa na transição
entre "o homem que ele é" para "o homem como poderia ser se realizasse
sua natureza essencial", coisa muito diferente das propostas dos
pensadores modernos, e isso está estreitamente conectado com o
desenvolvimento das ciências da natureza e da revolução cientifica, no
debate sobre a natureza do homem. A título de ilustração, o nascimento
do indivíduo tem uma importância crucial para o deslocamento do homem em
relação às funções que predominavam na ética aristótelico-tomista até o
medievo. (13)
Teve origem nas formas de vida social às quais dão expressão os
teóricos da tradição clássica. Segundo essa tradição, ser homem é
desempenhar um conjunto de papéis cada um dos quais tem seu propósito:
membro de uma família, cidadão, soldado, servo de Deus. É somente quando
se vê o homem como indivíduo, antes e fora de todos os papéis, que o
"homem" deixa de ser conceito funcional. (14)
Ademais, uma passagem em que MacIntyre explica bem o desenvolvimento do
fracasso dessas afirmações que fundamentaram de maneira perfunctória os
"direitos do homem", hodiernamente cognominados "Direitos Humanos".
Assim, não se trata apenas de não se poder justificar as conclusões
morais do modo como antes se fazia, porém a perda da possibilidade na
justificativa indica que uma mudança correlativa no significado do
jargão moral. Portanto, o princípio da conclusão "sem 'deve'" de
premissas "é" torna-se verdade irrefutável para filósofos cuja cultura
só possua o vocabulário moral empobrecido que resulta dos episódios que
acabo de contar. Aceitar isso como verdade lógica eterna foi sinal de
uma profunda falta de consciência histórica que naquele tempo contaminou
e ainda hoje contamina demais a filosofia moral, pois sua proclamação
inicial, foi, em si, um evento histórico fundamental. Assinala tanto o
rompimento final com a tradição clássica e o colapso decisivo do projeto
do século XVIII de justificar a moralidade no contexto dos fragmentos
herdados, porem, já incoerentes, deixados pela tradição. (15)
Decerto que, no começo de sua obra, MacIntyre afirmou a existência de
fragmentos ou simulacros de moralidade, que autores modernos viriam a
herdar e usar como premissas para justificar conclusões éticas com um
disfarce de 'neutralização'. Outrossim, é a veracidade da máxima do
pensador escocês em que não há homem fora de uma tradição; tradição como
um argumento estendido no tempo em constante diálogo interno e externo.
(16)
Por outro lado, diferente da explicação de De Benoist sobre o direito,
MacIntyre ilustra bem essa simultaneidade do indivíduo, em cuja
compreensão subjaz, também, o 'direito' inato no individuo e a doutrina
inquestionável desse moralismo.
É claro que seria um tanto estranho que existissem direitos
atribuídos aos seres humanos simplesmente qua seres humanos à luz do
fato, que mencionei na minha exposição do argumentos de Gewirth, de que
não há expressão em nenhuma linguagem antiga ou medieval que se traduza
corretamente pela expressão "direito" até fins da Idade Média: o
conceito carece de meios de expressão em hebraico, grego, latim ou
árabe, clássico ou medieval. antes de cerca de 1.400, inexistente também
no inglês antigo, ou mesmo no japonês até fins de meados do século XIX.
Naturalmente, disso não se infere que não existiam direitos naturais
nem humanos; segue-se apenas que ninguém podia saber que existiam. E
isso suscita pelo menos certas questões. Mas não podemos nos preocupar
em responde-las, pois a verdade e simples: tais direitos não existem e
acreditar neles é o mesmo que acreditar em bruxas e unicórnios. (17)
Ademais, o conceito de "direito" é uma ficção, e mais bizarro ainda soa a
atribuição de direitos inatos ao homem, como já mostrou De Benoist.
Carl Schmitt estava certo quando diagnosticou, e previu, indiretamente, a
'era das neutralizações' totais, o desmembramento de um fracasso moral
em um projeto que já nasceu morto. Na simultaneidade do direito, além do
homem detentor de direitos inatos, os tentáculos da neutralização e do
enquadramento já atribuem direitos desde nascença aos animais
domésticos. Nem mesmo os animais escapam à beligerância do politicamente
correto e de sua incessante tirania em afirmar a existência de bruxas e
unicórnios.
UMA LEITURA CRÍTICO-REFLEXIVA ACERCA DOS LUMINARES DA DEMOCRACIA OCIDENTAL
O intérprete da realidade sócio-política circundante não pode e nem deve
abrir mão de lançar um olhar panorâmico à dinamicidade de funcionamento
das estruturas de poder que, no mundo globalizado, irradia de
macro-sistemas supra-estatais (oligarquias intergovenamentais e blocos
de integração) e descem até alcançar os micro-sistemas localizados
(Estados-Nação, em terminologia neo-hegeliana). O que choca neste
cenário de interconversão do poder soberano em focos estratégicos de
dominação a serviço de um esquema imperialista não é nem o fato de
sermos governados pelos interesses de hiperpotências transnacionais que
já consolidaram sua hegemonia v.g. na Assembleia Geral da ONU, mas o
fato de essas potências quererem impor um padrão homogêneo de
governabilidade aos países que escapam à sua zona de influência
imediata. Uma pesquisa rápida nos revelará de maneira inequívoca o quão
pateticamente seduzida e estupidificada está a civilização ocidental
pelo “paradigma” do Estado Democrático de Direito, consagrado
academicamente pelo frankfurtiano Jürgen Habermas.
Desde o pós-segunda-guerra, os que tratam a democracia liberal como
panaceia oferecem-na como única solução viável para a estabilização do
dissenso dentro de um quadro de opções mais ou menos distinguíveis cuja
única função é confundir o observador através da técnica da
prestidigitação, forçando-o a contemplar no regime democrático, não a
utopia irrealizável do reino prometeico da liberdade e da igualdade que
sempre foi, mas um programa concretamente articulado que retira seu
fundamento de legitimidade da soberania popular, ou, como insiste
Habermas, da “teoria do discurso”, que:
Conta com a intersubjetividade mais avançada presente em processos de
entendimento mútuo que se cumprem, por um lado, na forma
institucionalizada de aconselhamentos em corporações parlamentares, bem
como, por outro lado, na rede de comunicação formada pela opinião
pública de cunho político. (HABERMAS, A Inclusão do Outro – estudos de teoria política, p. 280).
Contudo, a teoria habermasiana não passa de uma tentativa malsucedida de
dissolver as concepções liberal e republicana clássica em um
procedimento político-deliberativo vocacionado para a oportunização
daquilo que o autor denomina “situação ideal de fala”. Habermas acredita
piamente na tese de que a via normal para que cidadãos detentores do
status de membros de uma comunidade política alcancem o consenso é a
fluidez do dissenso nos circuitos institucionais democráticos, sem
explicar de maneira satisfatória como isso pode ser efetivamente
assegurado. Patenteia-se, assim, a influência dos precursores do giro
linguístico-hermenêutico (Lwduing Wittgenstein e John Austin) na
elaboração da teoria discursiva do direito.
Sobre as democracias serem atualmente oferecidas como única solução
viável para as questões internas e externas dos Estados soberanos frente
ao espectro terrificante do “fundamentalismo”, o filósofo esloveno
Slavoj Žižek, um dos mais fervorosos críticos de Habermas, assevera que:
A lógica oculta é evidentemente a mesma que está por trás da escolha
imposta: você tem a liberdade de escolher o que quiser, desde que faça a
escolha certa (...) O que é problemático na forma como a ideologia
dominante nos impõe esta escolha não é o fundamentalismo, mas a própria
democracia: como se a única alternativa ao “fundamentalismo” fosse o
sistema político da democracia parlamentar liberal. (ŽIŽEK, Bem-Vindo ao Deserto do Real, pgs. 19 e 20)
A opção pelo regime democrático deixa de ser produto espontâneo do
exercício de uma faculdade por parte de nações soberanamente
constituídas e se torna a imposição de um receituário apriorístico a
partir do instante em que cai nas malhas pragmático-retóricas do
discurso público, que tende invariavelmente a distorcer a realidade dos
fatos em nome da ideologia dominante. Falar em democracia quando não se
admite a veiculação do discurso anti-democrático e comina sanções penais
a quem ousa proferi-lo é incorrer naquela espécie de contradição que
ameaça a própria coerência interna do sistema defendido. Nesta senda, é o
edifício democrático seu próprio algoz, na medida em que não reconhece
como legítima a soberania de um povo que julga o programa democrático
inadequado à persecução de seus objetivos.
Ora, se a legitimidade do Estado Democrático de Direito dimana da livre
associação e articulação discursiva como perfilha Habermas, por que o
discurso totalitário, uma vez articulado, haveria de ser perseguido
coercitivamente no bojo de uma sociedade pretensamente democrática?
Nesse sentido, Julius Evola assevera que
Por paradoxal que pareça, a “democrática “liberdade de opinião” devia
comportar a legitimidade de professar e defender ideias
anti-democráticas. Como não é assim, o resultado é um regime asfixiante e
tirânico (de resto, são inúmeros os autores a afirmar que há poucos
regimes tão intolerantes como os que apregoam a “liberdade”). (EVOLA, Il Fascismo: Saggio di una Analisi Critica dal Punto di Vista Della Destra, p. 92)
Poderíamos cavar ainda mais fundo aguilhoando que a repulsa ao discurso
anti-democrático não se origina unicamente dos aparelhos repressivos de
controle social numa ebulição althusseriana de perpétua
auto-justificação demagógica, mas também da própria sociedade civil
mergulhada em um transe hipnótico infundido pela incessante contrafação
de inimigos a serem publicamente execrados, toda vez que alguém se
atreve a gozar de sua “liberdade” e “igualdade de fala” para se
manifestar ou exibir símbolos, signos ou sinais que a patrulha democrata
julga impróprios ao contexto de “uma sociedade livre e igualitária”. O
maior de todos os vícios do regime democrático é, de longe, o de arrogar
para si o monopólio da definição de conceitos indeterminados, como
“liberdade” e “igualdade”, atividade que, no fim das contas, traduz-se
em abjeta genuflexão hipostática.
Lastreado em G.K. Chesterton, Slavoj Žižek obtempera que o conforto em
assumir uma posição democrática em relação ao “pensamento
fundamentalista” se deve ao inconveniente de este último estribar-se em
premissas dogmáticas, ao passo que aquela:
Despreza ironicamente todo engajamento integral, toda tomada de
partido “dogmática”. Assim, estamos pregando a velha lição de como o
significado ideológico de um elemento não está no próprio elemento, mas
na forma como ele é “apropriado”, como é articulado numa cadeia? É
verdade – com uma condição fatal: a de que devemos reunir a coragem de
abandonar a “democracia” como o Significante-Mestre dessa corrente. A
democracia é hoje o principal fetiche político, a rejeição dos
antagonismos sociais básicos: na situação eleitoral, a hierarquia social
é momentaneamente suspensa, o corpo social é reduzido a uma multidão
pura passível de ser contada, e aqui também o antagonismo é suspenso. (ŽIŽEK, Bem-Vindo ao Deserto do Real, pgs.101 e 102)
Nesse diapasão, a “soberania popular” (em nível infra-estrutural) e os
“direitos humanos” (em instância superestrutural) não passam de uma
blindagem à máquina de guerra do estabilishment progressista. A
inclinação ocidental por esse tipo de regime deflui dos comandos de
reoxigenação que ele parece emitir no que tange à eliminação seletiva de
células dissidentes com vistas a um ideal de higienização supremacista e
altamente profilático. Em suma: as democracias ocidentais absorveram
tudo o que de mais teratologicamente insano concorre para a
caracterização dos organismos políticos totalitários. Então, não se
trata evidentemente de discriminar ambos os modelos a partir de
qualificativos binários, como “melhor e pior”, “bom e mal” (como se os
defeitos de um eximissem o outro de prestar contas pelas suas próprias
imperfeições), mas tão somente de entender as democracias liberais com a
re-substancialização do totalitarismo em uma nova perspectiva
aparentemente mais tolerável e “aberta para o futuro”, o que acaba por
torná-la infinitamente mais perigosa do que qualquer ideologia
assumidamente totalitária.
A sentença do romancista britânico Aldous Huxley sintetiza
magnificamente o teor das considerações até aqui expendidas: “a ditadura
perfeita terá as aparências da democracia, uma prisão sem muros na qual
os prisioneiros não sonharão com a fuga. Um sistema de escravatura
onde, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à sua
escravidão”. Não sem certa razão, Aristóteles via na democracia (assim
como na oligarquia e na tirania) um desvio das formas de governo
tradicionais (monarquia, aristocracia e governo constitucional). O
filósofo estagirita percebeu há mais de dois mil anos (no século III
a.C.) o que o ocidente pós-moderno se recusa a aceitar: que o regime
democrático constitui, par excellence, um vício, e não uma virtude
excelsa.
O patógeno já começa a infectar o organismo biopolítico desde o momento
em que fornece o estatuto paradigmático àquilo que, em verdade, não
passa de uma ferramenta de desestabilização de unidades políticas mais
fragilizadas a serviço da intrusão neocolonialista. Um belo exemplo de
“democracia” é o que acontece quando os EUA se auto-legitimam pelo
patriot act a bombardearem o Aferganistão sob o (falso) pretexto de se
protegerem de ataques terroristas em potencial (abstratos). Jürgen
Habermas ignora visivelmente o fato de que, assim como a descoberta do
átomo, as democracias ocidentais podem (e são!) utilizadas como armas de
destruição em massa, independente da maneira pela qual se dá sua
operacionalidade e a despeito de quão nobres possam ser julgadas suas
intenções. O fato de essa destruição ocorrer fora do alcance contingente
dos meios de comunicação de massa em nada atenua sua gravidade. A
contrario sensu, intensifica-a, uma vez que confere a um cenário
extremamente problemático a aparência da mais idílica e desejável
normalidade.
Outro defeito condenável dos democratas é o de pretenderem-se melhores e
mais justos do que os defensores de regimes cujos porta-vozes não se
limitam a reproduzir ambiguidades semânticas (v.g. “isegoria” e
“isonomia”), como se o emprego isolado de tais vocábulos significasse
alguma coisa fora de seu contexto originário. Curiosamente, o democrata
Robert A. Dahl aponta exatamente esse déficit cognitivo no escalonamento
hierárquico da guardiania platônica, ideia segundo a qual o governo
deve pertencer a um rei-filósofo oriundo da casta dos guardiões. Nas
palavras de Dahl:
Boa parte da persuasão da ideia de guardiania vem da sua visão
negativa da competência moral e intelectual das pessoas comuns. Mas
ainda que essa visão fosse aceita (...), isso não significa que existem
guardiões em potencial com conhecimento e virtude definitivamente
superiores ou que eles possam ser criados, tampouco que se possa confiar
neles para governar em prol do bem público. (DAHL, A Democracia e seus Críticos, p. 100)
E por que deveríamos confiar nos anseios dispersivos de uma massa
fragmentária de indivíduos cuja única semelhança é o fato de partilharem
um mesmo espaço de deliberação no processo de tomada de decisões
coletivas? O que o professor emérito de ciência política da Universidade
de Yale parece ignorar é que a complexidade das discussões que têm sido
encetadas em nível global transcende os domínios da política comparada
para abranger outras áreas do conhecimento, como, por exemplo, a
geopolítica, a sócio-antropologia, as relações internacionais e a
etno-sociologia. Pretender diagnosticar questões complexas a partir de
falácias lógicas do tipo modus ponens é, no mínimo, desonestidade
intelectual, quando não uma necessidade patológica de viver em
deliberada auto-ilusão.
Com efeito, os membros de uma comunidade política regida hipoteticamente
por uma elite guardiã carecem, individualmente, das condições
necessárias para garantir que o rei-filósofo governa com base no estrito
cumprimento do Sumo-Bem, porquanto este, segundo Platão, é insuscetível
de ser divisado mesmo através de operações cognoscitivas. Todavia, a
pergunta a ser feita não é se os governados são dotados de atributos que
lhes permitem demonstrar objetivamente a legitimidade soberana dos
governantes, mas se possuem a faculdade de reconhecer como legítima a
autoridade do titular do poder soberano. Existe um abismo intransponível
entre a demonstração (limitada pela neutralidade do ponto de vista do
observador externo) e o reconhecimento (que independe de quaisquer
critérios de neutralidade objetiva) que nenhuma espécie de “livre
associação comunicativa” é capaz de colmatar.
Um dos maiores prejuízos suscitados pela virada linguística para o
pensamento ocidental tem a ver com o rechancelamento da pretensão
materialista típica da epistemologia cartesiana. Destarte, tanto
Habermas quanto Dahl excluem proposições metafísicas do iter
procedimental que constrói a plataforma deliberativa, encapsulando
hermeticamente a estruturação democrático-discursiva dentro de si mesma.
Habermas, que se vangloria por ter superado as premissas da teoria dos
sistemas sociais do jus-sociólogo Niklas Luhmann, em verdade, não fez
mais do que acatá-la sob pressupostos diversos dos originalmente
elencados, na medida em que, condicionando o desdobramento
comunicacional do discurso público à autopoiese do racionalismo
cientificista, acabou imunizando o regime democrático a considerações de
natureza supra-empírica. O discurso teológico, mítico, tradicionalista,
gnosiológico e metafísico não seria pacificamente recepcionado pelas
instituições democráticas, mas, antes disso, estigmatizado e impugnado
de plano como a inexorável encarnação do retrocesso totalitário.
Slavoj Žižek fulmina impiedosamente as bases da concepção democrática, prelecionando que:
Na Velha República Alemã era impossível uma pessoa combinar três
características: convicção (fé na ideologia oficial), inteligência e
honestidade. Quem acreditava e era inteligente, não era honesto; quem
era inteligente e honesto, não acreditava; quem acreditava e era
honesto, não podia ser inteligente. O mesmo não se aplica à ideologia da
democracia liberal? Quem finge levar a sério a ideologia liberal
hegemônica não pode ser ao mesmo tempo inteligente e honesto: ou é
estúpido ou um cínico corrompido. (ŽIŽEK, Bem-Vindo ao Deserto do Real, pgs. 93 e 94)
E acrescenta mais adiante, com notória jocosidade:
Portanto, se me permite uma alusão de mau gosto ao Homo sacer de
Agamben, quero afirmar que o modo liberal dominante de subjetividade
hoje é o Homo otarius: ao tentar manipular e explorar os outros, acaba
sendo ele o verdadeiro explorado. Quando imaginamos estar zombando da
ideologia dominante, estamos apenas aumentando seu controle sobre nós. (ŽIŽEK, Bem-Vindo ao Deserto do Real, p. 94)
O grande paradoxo das democracias liberais hodiernas consiste no fato de
que, quanto maior o grau de “liberdade” e ”igualdade” abstratamente
outorgado aos cidadãos no procedimento de tomada de decisões coletivas,
menos “livres” e “iguais” eles se tornam efetivamente, posto acreditarem
ter esgotado todas as possibilidades de escolha, além das quais não há
absolutamente nada a ser desejado e perseguido como projeto de vida boa.
O regime democrático pode ser explicado através da metáfora zizekiana
do café descafeinado, que descreve a perpétua inquietação suscitada pela
pseudo-realização de um programa irrealizável.
De todo o acima exposto, evocamos as sábias palavras do professor
Alexandr Dugin sobre o fracasso das democracias ocidentais e sobre
porque elas devem ser combatidas:
É-nos dito (através da hipnose e propaganda) que “não pode ser” de
outra forma (do que é agora). Ou que qualquer alternativa seria “ainda
pior”. Essa melodia familiar diz que “a democracia tem muitos defeitos,
mas todos os outros regimes políticos são muito piores, é melhor tolerar
o que já está”. Isso é mentira e propaganda política. O mundo em que
vivemos, é inaceitável, intolerável, levando-nos à morte inevitável e
encontrar uma alternativa para isso é uma condição de sobrevivência. Se
não derrubarmos o status quo, não mudarmos o curso do desenvolvimento da
civilização, não privarmos do poder, não destruirmos a oligarquia
mundial como um sistema e como forças específicas, grupos, instituições,
corporações e até mesmo indivíduos, nós vamos nos tornar não apenas
vítimas, mas também cúmplices do fim iminente. As “alegações de que
“tudo não é tão ruim”, “antes era pior”, “de alguma forma tudo vai ficar
melhor”, etc, é uma forma deliberada de sugestão, hipnose, destinada a
acalmar os resquícios de consciência livre, independente de análises
sóbrias. (DUGIN, Geopolítica do Mundo Multipolar, p. 181)
CRÍTICA AO REGIME DEMOCRÁTICO SOB A ÓTICA DO TRADICIONALISMO STRICTO SENSU DE JULIUS EVOLA, RENÉ GUÉNON E SAVITRI DEVI
O que nos motivou a buscar respaldo na concepção tradicionalista com o
escopo precípuo de desmistificar o regime liberal-democrata foi a
esperança de que, ao reinserir pensamentos desta natureza na
procedimentalidade do discurso público, possamos quebrar o engessamento
da teoria democrática através de seus próprios mecanismos
institucionais. Para tanto, é imperioso destacar, desde logo, que tal
mister só poderá ser alcançado mediante uma ruptura radical com a
comunicabilidade seletiva, que torna a veiculação do discurso de um
certo grupo de interesses cinicamente mais “justa e igualitária” do que
de outros. A intenção, desde o início, tem sido explicitar a maneira
pela qual um sistema de “co-legisladores” que se auto-legitima a si
mesmo desperta os ideais mais perversos e ignominiosos em detrimento dos
variados tipos de arcabouços civilizacionais e costumes
tradicionalmente arraigados, ao ponto de tornar admissível o sacrifício
da soberania política de povos inteiros em prol do sonho democrático de
um ocidente que carece dos instrumentos hábeis a garantir sua própria
sobrevivência na arena geopolítica mundial.
Em sua célebre Revolta Contra o Mundo Moderno, o barão italiano Julius
Evola procede a uma investigação meticulosa acerca da decadência da
civilização ocidental, perscrutando as causas que a deflagraram no
interior dos mais diversificados ciclos cósmicos. Para os fins do
presente estudo, nos limitaremos a realizar uma explanação evoliana
acerca do ciclo helênico, no bojo do qual se encontra catalogada a
ontogênese do sistema democrático.
Segundo Evola, o cisma que abalou a configuração aristocrático-sacral
das primeiras cidades gregas deu ensejo à progressiva
institucionalização de um regime centrado na secularização dos anseios
populares.
Um fermento revolucionário altera a partir das bases as antigas
instituições, a antiga concepção do Estado, da lei, do direito e da
própria propriedade – e dissociando o poder temporal da autoridade
espiritual, reconhecendo o princípio electivo e introduzindo
instituições que foram se abrindo progressivamente às camadas sociais
inferiores e à impura aristocracia do censo (casta dos mercadores:
Atenas, Cumes, etc.), e, finalmente, à própria plebe protegida pelos
tiranos populares (Argos, Corinto, Sicyone, etc.) – dá lugar ao regime
democrático [no qual] realeza, oligarquia, burguesia e, para terminar,
dominadores ilegítimos (...) vão buscar o seu poder [em] um prestígio
puramente pessoal e que se apoiam no demos, são estas as fases da
involução que, depois de se ter manifestado na Grécia, se repete na Roma
antiga e se realiza em seguida em grande escala e de uma maneira total
no conjunto da civilização moderna. (EVOLA, Revolta Contra o Mundo Moderno, p. 344)
Entretanto, os inconvenientes do princípio democrático não devem ser
interpretados como produzindo uma repercussão meramente política, a teor
do que inescrupulosamente vêm sustentando os críticos mais contumazes
da democracia burguesa ocidental, isso porque o “fenómeno político está
estreitamente ligado a manifestações análogas que atingem mais
directamente o plano do espírito”. (EVOLA, Revolta Contra o Mundo
Moderno, p. 344)
A redefinição estrutural das instituições que regem funcionalisticamente
as relações de poder no seio de um microssistema sócio-político
regionalizado (ou no contexto do intercâmbio entre várias comunidades
políticas) produz consequências desagregadoras na espiritualidade
professada dentro do referido microssistema. Daí o erro grosseiro
decorrente da interpretação atomizada do fenômeno político no qual
incorre as ciências analíticas ao pretenderem isolar seu objeto de
estudo com o afã de apreendê-lo mediante a técnica do desmembramento,
herdada das ciências naturais.
Portanto, para entendermos a dimensão real dos males democráticos, bem
como suas principais contribuições para o colapso iminente da
civilização ocidental, urge mergulharmos em uma abordagem essencialmente
transdisciplinar que, por um lado, não ignore a fenomenologia política
em sua totalidade, mas que, por outro, não se atenha única e
exclusivamente a ela, trazendo a lume questões de índole escatológica.
Somente a partir do instante em que passamos a assumir a existência de
uma interpenetração cósmico-simbólica do sistema político com os
sistemas esotéricos de base metafísica é que poderemos atacar o âmago da
questão livres de pré-conceitos e precipitações reducionistas.
Nesta ordem de ideias, Julius Evola reputa à democracia helênica o
esgotamento da figura arquetípica do herói grego e da desnaturação do
conceito hermético (pré-helênico) de imortalidade da alma.
É assim que nasce e se difunde na Grécia a estranha ideia de que a
imortalidade é uma coisa quase normal para qualquer alma de mortal;
paralelamente, democratiza-se a noção de herói a ponto de em certas
regiões – por exemplo na Beócia – se acabar por considerar como
<<heróis>> homens que – como exprimiu argutamente alguém –
de heroico não tinham senão o simples fato de estarem mortos. (EVOLA, Revolta Contra o Mundo Moderno, p. 344 e 345).
Essa descaracterização da espiritualidade típica de sociedades
aristocráticas foi e continua sendo nos dias de hoje alimentada pela
crença cega em valores seculares, como o humanismo, o cientificismo e o
racionalismo, que muito antes do advento do século das luzes podiam ser
vislumbrados, ainda que de maneira bastante tímida e residual, nas pólis
gregas.
Mais tarde os deuses, já enfraquecidos pela sua transformação em
figuras mitológicas, tornaram-se conceitos filosóficos, ou seja, em
abstracções, ou então em objetos de um culto esotérico. A emancipação do
indivíduo, em relação à tradição, sob a forma de
<<pensador>>, a afirmação da razão como instrumento de livre
crítica e de conhecimento profano, derivaram normalmente desta
situação. E é precisamente na Grécia que elas se manifestaram, pela
primeira vez, de uma maneira característica. (EVOLA, Revolta contra o mundo Moderno, p. 344)
Todavia, a despeito de sua origem helênica, as democracias modernas não
guardam a mínima semelhança estrutural com o modus de organização
política das cidades-Estado gregas, uma vez que, assimilado pelos ideais
iluministas de matriz europeia, o fenômeno democrático passou a ser
compreendido sob um enfoque estritamente quantitativo, voltado para o
interesse majoritário, consoante apregoa René Guénon.
Isso leva-nos imediatamente a perceber em que é que está
essencialmente errada a idéia segundo a qual a maioria deve fazer a lei
(...) A opinião da maioria só pode ser a expressão da incompetência,
quer esta resulte da falta de inteligência, ou da ignorância pura e
simples. Pode-se fazer intervir, a este respeito, certas observações de
“psicologia coletiva” e lembrar notadamente o fato bastante conhecido de
que, numa multidão, o conjunto das reações mentais que se produzem
entre os indivíduos que a compõem leva à formação de uma espécie de
resultante que não está nem sequer no nível da média, mas no nível dos
elementos mais inferiores. (GUÉNON, Crise do Mundo Moderno, p. 70)
As objeções de Guénon às premissas estruturantes das democracias
ocidentais registradas em Crise do Mundo Moderno devem ser compreendidas
à luz do que o autor denomina “metafísica pura”, em relação à qual a
selvageria política de uma cotidianidade viciada e reiteradamente
fustigada por imperfeições teórico-práticas situa-se muito aquém do
nível desejável de reflexão e ponderação, o que acaba repercutindo
negativamente na capacidade do sistema de solucionar eventuais conflitos
de interesse. Associando a metafísica pura ao motor-imóvel
aristotélico, Guénon estabelece uma dissociação radical entre as
ciências contemplativas (ou especulativas), voltadas para o logos
espiritual inerente a cada sistema religioso e as ciências profanas, de
caráter eminentemente positivista/materialista.
A importância deste desdobramento conceitual reside no fato de que os
regimes seculares embasados pelo iluminismo pré-moderno (inclusive – e,
sobretudo - a democracia) são incapazes de solucionar de maneira
necessária (não-acidental) as polêmicas que ele vive fomentando e
retroalimentando monotonamente no desenrolar de um verdadeiro
circunlóquio. Questões que já deviam ter sido superadas voltam a emergir
no contexto de uma sociedade plúrima, que, exatamente por admitir um
sem número de “respostas possíveis”, incorre no embaraço de não
responder coisa alguma. Destarte, a ansiedade desencadeada pela busca de
soluções abstratas para todos os problemas do mundo torna-se
inversamente proporcional à efetiva concreção e aplicação desses
prognósticos.
Como um autoproclamado anti-polemista, Guénon faz gravitar suas
elucubrações em torno de uma constelação hermenêutica diametralmente
oposta ao cientificismo racionalista. Isso porque, na cosmovisão do
autor, o tratamento das ciências profanas e suas ramificações como
sistemas cognitivos autossuficientes só poderá resultar em uma
“dispersão na multiplicidade”.
As ciências seculares devem ser compreendidas como meros prolongamentos
da metafísica pura (fonte de sua unidade e legitimidade), reconhecendo a
posição a elas reservada na hierarquia cósmica. Em síntese apertada,
porém completa: a metafísica pura “unifica” as ciências vulgares em um
agregado coerente, no sentido de fornecer a elas a coesão necessária à
adequada otimização de seu potencial cognoscitivo. Portanto, a teoria
democrática pode ser impugnada como:
A inversão completa da ordem normal, visto que é a proclamação da
supremacia da multiplicidade como tal, supremacia que, de fato, só
existe no mundo material. Pelo contrário, no mundo espiritual e mais
simplesmente ainda na ordem universal, é a unidade que está no cimo da
hierarquia, porque é ela o princípio de onde parte toda a
multiplicidade; mas quando o princípio é negado ou perdido de vista, só
resta a multiplicidade pura, que se identifica com a própria matéria. (GUÉNON, Crise do Mundo Moderno, p. 71)
O que está implícito no excerto guénoniano é que o elevadíssimo grau de
incerteza ofertado pelo regime democrático fá-lo padecer de uma ausência
de configuração própria e contornos semânticos específicos, tornando
impossível ao hermeneuta ordinário sondar os limites de sua
operacionalização na topografia de uma realidade sócio-política
extremamente limitada, o que nos forçaria não só a ampliar ad infinitum o
rol de considerações crítico-reflexivas acerca de um mesmo objeto como
também a buscar respaldo para a resolução de certos conflitos na
cosmo-esfera de uma ordem transcendente, alógena ao espaço e ao tempo. É
assim que as imperfeições inerentes ao universal pragmático
habermasiano o aproximam mais de um auto-encapsulamento
impermeabilizante da comunicabilidade cidadã do que de uma via
alternativa de estabilização das expectativas de comportamento.
Destarte:
O argumento mais decisivo contra a “democracia” resume-se em poucas
palavras: o superior não pode emanar do inferior, porque o “mais” não
pode sair do “menos”; isto é de um rigor matemático absoluto, contra o
qual nada poderia prevalecer (...) É demasiado evidente que o povo não
pode conferir um poder que ele próprio não possui; o verdadeiro poder só
pode vir do alto, e é por isso, diga-se de passagem, que só pode ser
legitimado pela sanção de alguma coisa superior à ordem social, ou seja,
uma autoridade espiritual. Se for de outra maneira, será apenas uma
contrafação de poder, um estado de fato que injustificável por defeito
de princípio, e em que não pode haver senão desordem e confusão. (GUÉNON, Crise do Mundo Moderno, p. 69)
Pode-se, a título de esclarecimento, fazer uma homologia entre o papel
desempenhado pelo titular do poder soberano em uma aristocracia régia
com o funcionamento de um organismo biológico, que tem todos (ou quase
todos) os órgãos condicionados pelo bombeamento de sangue oriundo dos
movimentos de contração e dilatação (sístole e diástole) do músculo
cardíaco. O mesmo ocorre em um grupamento sócio-político devidamente
administrado pela figura de um líder central, cujas deliberações
refletem a vontade dos governados, sem, contudo, se confundir com ela,
como se verifica nas democracias ocidentais de orientação liberal.
Ao líder hereditário, sístole e diástole de uma comunidade
fisiologicamente unificada, deve ser conferida autoridade plena para
tomar decisões em nome da coletividade, uma vez que, da mesma maneira
que um organismo não escolhe sua saúde coronária, os governados não têm
competência para escolher, mediante sufrágio universal, seu guardião.
Não compete ao homem médio redefinir a plataforma axiológica do seu
espaço de interação, porque se a comunidade da qual faz parte fosse
passível de ser alterada idiossicraticamente, então o “fazer parte”
sobejaria degenerado, na medida em que este pressupõe a assunção de
condicionantes exógenas à vontade de pessoas e/ou grupos específicos. O
“fazer parte” não pode ser desmembrado em várias partes do “fazer
parte”. Do contrário, o próprio ideal de unificação se dissiparia feito
poeira, arrastando consigo o sentido de coerência do holismo comunitário
e da própria ordem política concebida como um todo organicamente
articulado.
Os chamados tradicionalistas em sentido estrito são unânimes em afirmar
que o ocidente caminha para o seu sepultamento, na medida em que o logos
ancestral vai sendo exponencialmente sobrepujado pelo frenesi
espasmódico progressista manifesto pelos mais variados segmentos
ideológicos da modernidade. A ideologia secular preencheu todos os
espaços dantes ocupados pela moral espiritual, trazendo em seu bojo
postulados que reinterpretam a si mesmos sob diversos ângulos e
perspectivas; é como se todos os filósofos e politólogos desde René
Descartes explorassem a mesma ideia de formas diferentes, fazendo com
que os erros de outrora se tornem ainda mais acentuados. Por esta razão,
os democratas pós-modernos enganam-se redondamente ao creem-se libertos
do invólucro dogmático que pairava sobre seus predecessores na
modernidade. Tal qual a maldição do Dr. Viktor Frankenstein na crônica
de Mary Shelley, o caráter sectário típico das ideologias de massa
impregna as democracias contemporâneas de maneira simbiótica. Criador e
criatura lutam incansavelmente para se separarem, mas o fato de serem
frutos de uma mesma experiência amarra suas vidas a um único e
inevitável destino.
É nesse sentido que Savitri Devi aduz que o homem moderno
É ensinado – nos países democráticos, de qualquer modo – que ele é
livre em todos os aspectos; que ele é “um indivíduo, que responde a
ninguém, mas somente à sua “consciência” e todo o seu ser, tão
completamente de acordo com o padrão, que ele não é mais capaz de reagir
de uma forma diferente. E como pode um homem assim falar de “pressão
sobre o indivíduo” em qualquer sociedade, seja ela antiga ou moderna! (DEVI, O Relâmpago e o Sol, p. 7)
Pode-se, ainda, tecer críticas arrasadoras à democracia neoliberal,
identificando-a como um dos elementos que caracterizam a (assim
denominada pela cosmologia hindu) Quarta Idade, Idade Sombria ou
simplesmente Kali Yuga. Conforme o escólio de René Guénon:
A doutrina hindu ensina que a duração de um ciclo humano, ao qual dá o
nome de Manvantara, divide-se em quatro idades, que correspondem a
fases de um obscurecimento gradual da espiritualidade primordial; são
esses mesmos períodos que as tradições da Antiguidade ocidental, por seu
lado, designavam como as Idades de Ouro, de Prata, de Bronze e de
Ferro. Estamos presentemente na quarta Idade, Kali-Yuga ou “Idade
Sombria”, e estamos nela, afirma-se, há mais de seis mil anos, ou seja,
desde uma época bastante anterior a todas aquelas que são conhecidas da
História “clássica”. Desde então, as verdades que eram outrora
acessíveis a todos os homens tornaram-se cada vez mais dissimuladas e
difíceis de atingir; aqueles que as possuem são cada vez menos numerosos
e, se o tesouro da sabedoria “não humana”, anterior a todas as idades,
nunca se pode perder, ele se envolve no entanto em véus cada vez mais
impenetráveis, que o escondem aos olhares e sob os quais é extremamente
difícil descobri-lo. (GUÉNON, Crise do Mundo Moderno, p. 9)
Savitri Devi corrobora o teor destas elucubrações, acrescentando que a Kali Yuga é
a fase em que a mentira é chamada de “verdade” e a verdade é
perseguida como falsidade ou ridicularizada como loucura; em que os
expoentes da verdade, os líderes divinamente inspirados, os verdadeiros
amigos de sua raça e de toda a vida – os homens como Deus – são
derrotados, e seus seguidores humilhados e sua memória caluniada,
enquanto os mestres das mentiras são tidos como “salvadores”; a fase em
que cada homem e mulher está no lugar errado, e o mundo é dominado por
indivíduos inferiores, raças bastardas e doutrinas viciosas, tudo parte
integrante de uma ordem inerente de feiura muito pior do que a completa
anarquia. (DEVI, O Relâmpago e o Sol, p. 13)
As considerações de Julius Evola sobre a decadência da civilização
ocidental a partir do ciclo helênico reforçam a ideia de que as
democracias contemporâneas só poderiam triunfar em um território no qual
o humanismo iluminista está profundamente enraizado como fator de
ressemantização ontológica da estrutura da realidade, o que torna
imperiosa a constatação de que a tradição não pode sobreviver num
ambiente em que inexiste uma correspondência recíproca entre o sagrado e
o profano, em que esta reciprocidade foi castrada pelo sentimentalismo
humanista de tessitura laica ou secular.
O humanismo – tema característico da idade do ferro – já se anunciava
através do aparecimento de um sentimentalismo religioso e da dissolução
dos ideais de uma humanidade virilmente sagrada. Mas o humanismo abre
resolutamente outras vias, em particular na Hélada, com o advento do
pensamento filosófico e da investigação física. E a este respeito não se
manifesta nenhuma reação tradicional considerável; pelo contrário,
assiste-se ao seu desenvolvimento regular, paralelamente ao
desenvolvimento de uma crítica laica e antitradicional; foi como que a
propagação de um cancro nos elementos sãos e anti-seculares que ainda
subsistiam na Grécia. Embora isto corra o risco de ser dificilmente
concebível para o homem moderno, é verdade que historicamente a
predominância do <<pensamento>> é um fenômeno marginal e
recente – mesmo sendo anterior À concepção puramente física da natureza.
O filósofo e o <<físico>> não passam de dois produtos
degenerescentes surgidos numa fase já avançada da última idade, a idade
do ferro.Esta <<descentralização>> que, no decorrer das
fases já consideradas, veio a separar gradualmente o homem de suas
origens, deveria finalmente fazer dele, em vez de um ser, uma
existência, ou seja, <<algo que está de fora>>, uma espécie
de fantasma, de tronco, que no entanto terá a ilusão de reconstruir
sozinho a verdade, a sanidade e a vida. (EVOLA, Revolta Contra o Mundo Moderno, p. 347)
É esta atmosfera impregnada de um racionalismo infra-humano na qual
vicejam os mais desarrazoados impropérios que vêm sustentando a crença
popular em um regime pretensamente superior à própria história, não em
termos de uma transcendentalidade imanente, mas no sentido de uma
completa intransigibilidade para com doutrinas não alinhadas aos
corolários da marcha ocidental rumo ao colapso civilizacional. Não há
nada de surpreendente no fato de o regime democrático procurar,
desesperadamente, um sentido de autojustificação na historiografia
contemporânea, porque este é precisamente o campo em que sua derrota se
verifica de maneira mais escancarada. O que se tem não é uma
justificação real, historicamente fundamentada, e sim uma aparência de
legitimidade, ou uma legitimidade virtualmente imposta pela ruptura da
história com a pré-história.
Evocamos o magnífico excerto de Giorgio Agamben para contrastar com o
pano de fundo explorado neste tópico, e que resume de maneira
grandiloquente a crise moral e espiritual das democracias hodiernas:
Daqui, sobretudo, a singular inquietude do poder exatamente no
momento em que se encontra diante do corpo social mais dócil e frágil
jamais constituído na história da humanidade. É por um paradoxo apenas
aparente que o inócuo cidadão das democracias pós-industrial (o bloom,
como eficazmente se sugeriu chama-lo), que executa pontualmente tudo o
que lhe é dito e deixa que os seus gestos quotidianos, como sua saúde,
os seus divertimentos, como suas ocupações, a sua alimentação e como
seus desejos sejam comandados e controlados por dispositivos até nos
mínimos detalhes, é considerado pelo poder – talvez exatamente por isso –
como um terrorista virtual. Enquanto a nova normativa europeia impõe
assim a todos os cidadãos aqueles dispositivos biométricos que
desenvolvem e aperfeiçoam as tecnologias antropométricas (das impressões
digitais à fotografia sinalética) que foram inventadas no século XIX
para a identificação dos criminosos reincidentes, a vigilância por meio
de videocâmera transforma os espaços públicos das cidades em áreas
internas de uma imensa prisão. Aos olhos da autoridade – e, talvez, esta
tenha razão – nada se assemelha melhor ao terrorista do que o homem
comum. (AGAMBEN, O Que é o Contemporâneo, pgs. 49 e 50)
O CARÁTER RIZOMÓRFICO DAS DEMOCRACIAS CAPITALISTAS SOB O PRISMA DA ESQUIZO-ANÁLIZE DELEUZO-GUATTARIANA
Neste tópico, analisaremos as democracias burguesas à luz da
esquizo-análise de Gilles Deleuze e Felix Guattari, apontando as
deficiências e contradições subjacentes à tese que preconiza a
existência de um “sistema democrático”. Quer-se, com isto, evidenciar
que a expressão “sistema democrático” encerra um oximoro, na medida em
que a molecularização dos focos de centralidade e operacionalidade
decorrentes da essência mesma do regime democrático vai de encontro a
quaisquer pretensões de sistematicidade, colocando em xeque o próprio
caráter de reductio ad uno que Robert Dahl, Jürgen Habermas, Norberto
Bobbio et caterva procuraram tão obstinadamente imprimir às democracias
contemporâneas. Oportuno recordar o paradoxo democrático para uma melhor
compreensão da abordagem em tela, qual seja: o de que a persecução de
um ideal de abertura para o futuro transforma a democracia em um sistema
fechado, mas somente enquanto “corpo sem órgão” nas latitudes movediças
de um devir equacionado pela singularidade rizomórfica do Ecúmeno; isto
é: sem levar em consideração a outra face da “dupla articulação”, o
Planômeno.
Embora na propaganda democrática a configuração de um regime pautado na
veiculação de códigos binários (o sim/não habermasiano) como critério de
tomada de decisões no curso do procedimento deliberativo conserve uma
aparência de centralidade similar à morfologia estrutural sedentária
típica da árvore-raiz, as democracias capitalistas advogam um raciocínio
contraposto, a saber: o do livro-mundo nomadológico, na medida em que o
discurso democrático erige-se em subproduto de rearranjos de
micromultiplicidades produzidas e reproduzidas através de seus próprios
mecanismos radiculares. Isso, por si só, já seria mais do que suficiente
para desmistificar a ”coesão interna” entre Estado de Direito e
democracia e a própria ideia de um “mundo da vida” rigorosamente
encarado por Habermas como o espaço de discursividade público-privado.
Pode-se afirmar, a partir da fórmula geral do esquizo fornecida por
Deleuze e Guattari, que o funcionamento do Estado Democrático de
Direito, sincronizado com o “agenciamento maquínico” do iluminismo,
consubstancia as “linhas de lobo”, ou “linhas de desterritorizalização”,
tornando o mundo da vida habermasiano um deserto povoado, que “se opõe
menos aos órgãos do que a uma organização que compõe um organismo com
eles. O corpo sem órgãos não é um organismo morto, mas um organismo
vivo, e tão vivo e tão fervilhante que ele expulsou o organismo e sua
organização”. (DELEUZE e GUATTARI, Mil Platôs – Capitalismo e
Esquizofrenia, vol. 1, pgs. 41 e 42)
Ao contrário dos Estados orgânicos, escalonados hierarquicamente e
legitimados a partir de uma moralidade transcendente, o sentido de
autojustificabilidade dos Estados democráticos constitui, a um só tempo,
produto e geratriz da sua operabilidade horizontal.
No fim, todas as formas de simetria vertical (as orientações “de cima
para baixo”, hierárquicas) estão sujeitas à destruição e se tornam
horizontais. Similarmente, a linha vertical de poder e o Estado se
tornam horizontais e assim a antropologia política, empregando essa ou
aquela constituição do indivíduo, se dissipa e se dispersa no espaço da
poeira rizomática. (DUGIN, A Quarta Teoria Política, p. 109)
É assim que as democracias capitalistas, tal qual o esquizo deleuziano,
podem ser descritas como um pseudo-sistema supra-infra-dimensional, na
medida em que justapõe seus fragmentos subjuntivos e transcendentes,
equalizando-os na expansividade horizontalizada de múltiplos estratos
que convergem para um núcleo–pivô auto-replicante. Nas democracias
liberais, o homem “é um obstáculo no caminho de si mesmo, ele perturba e
incomoda a si mesmo. Um homem cai diante de esquizomanias individuais
como foi retratado por Deleuze em “Anti-Édipo” (DUGIN, A Quarta Teoria
Política, p. 130)
Destarte, o regime democrático é simplesmente insuscetível de ser
assimilado a partir da arregimentação e concatenação de micrologismos no
bojo de uma estrutura fractal criptografada, e o que os democratas
vendem como “estrutura” (no sentido arborescente de massa molar), em
verdade, não passa de uma pseudo-estrutura (no sentido rizomórfico de
matilha molecular) ou imitação do real pelo sobredimensionamento de uma
virtualidade esquizoide. É neste sentido que Slavoj Žižek atribui a
Deleuze o epíteto de filósofo do virtual:
La primera determinación que se nos viene a las mientes a propósito
de Deleuze es que es el filósofo de lo Virtual, y la primera reacción
ante eso debería ser oponer la noción de lo Virtual em Deleuze al tema
omnipresente de la realidade virtual: lo que le importa a Deleuze no es
la realidad virtual sino la realidad de lo virtual (que, en términos
lacanianos, es lo Real). Em sí misma la Realidad Virtual es una ideia
bastante miserable: la de imitar la realidad, la de reproducir su
experiencia em un medio artificial. La realidad de lo Virtual, por otra
parte, significa la realidad de lo Virtual como tal, de sus efectos y
consecuencias reales. Consideremos un atractor em matemáticas: todas las
líneas o puntos positivos que están dentro de su esfera de atracción se
le aproximan de manera incesante, pero sin llegar nunca a alcanzar su
forma; forma cuya existencia es puramente virtual, no outra cosa que la
figura hacia la que tienden líneas y puntos. No obstante, precisamente
como tal, lo virtual es lo Real de este campo: el inamovible punto focal
en torno al cual circulan todos los elementos. ¿No es esto, lo Virtual,
en último término, lo simbólico como tal? Tomemos la autoridad
simbólica: para funcionar como una autoridad efectiva, tiene que
permanecer como no-plenamente-atualizada, como una amenaza eterna. (ŽIŽEK, Organos sin Cuerpo – Sobre Deleuze y consecuencias, p. 19)
O termo “ameaça eterna” deve ser compreendido, no contexto democrático,
não como coerção panóptico-benthamiana de uma sociedade constantemente
vigiada por instituições de controle disciplinar, mas como pressão
sinóptica (dispersiva), fonte da irreflexão mediante a qual o consenso
cidadão é construído e pseudo-legitimado a partir de seu próprio eixo de
estruturação semiológica. Em poucas palavras: a democracia capitalista é
o retrato do totalitarismo perfeito, porque invisível, imperceptível,
inapreensível e, de conseguinte, indiagnosticável. O fato de a
autoridade política não estar plasmada em um centro de poder positivo
(posto que, pelo princincípio da soberania popular, é o povo – demos,
populus - que se auto-governa) não descaracteriza as democracias como um
regime pretensamente despótico. Isso significa apenas que o despotismo
passou de um nível macromolecular para um estrato micromolecular.
Quando o absolutismo é fragmentalizado em uma multiplicidade de focos
estrategicamente selecionados para exercê-lo nas instâncias parlamentar,
administrativa e judiciária, seu grau de repressão e controle é
hiperpotencializado, porque impulsionado em filamentos nas válvulas de
uma “máquina abstrata, que:
Começa a se desdobrar, começa a se erigir, produzindo uma ilusão que
transborda todos os estratos, embora pertença ainda a um determinado
estrato. É, evidentemente, a ilusão constitutiva do homem (quem o homem
pensa que é?). É a ilusão que deriva da sobrecodificação imanente à
própria linguagem. (DELEUZE e GUATTARI, Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 1, p. 79)
A democracia é a personificação daquilo que Deleuze e Guattari chamam de
singularidade zero, a dimensão neutral em cuja matriz radicular fluem
imperativos de consolidação do devir, que, por sua vez, “se asienta en
la fuerza productiva del “esquizo”, esta explosión del sujeto unificado
em la multitud impersonal de intensidades deseantes, intensidades que
son constreñidas subsiguientemente por lá matriz edípica”. (ŽIŽEK,
Organos sin Cuerpo – Sobre Deleuze y consecuencias, p. 48)
Portanto, não há se falar em uma dicotomia entre os processamentos de
macromultiplicidades arborescentes e micromultiplicidades rizomáticas,
uma vez que ambos figuram como desdobramentos lineares de uma
interpenetração a-epistemológica do sujeito com o objeto do
conhecimento. É precisamente neste interregno que a esquizomania
democrática se auto-propulsiona comunicativamente através de uma
linguagem codificada de “sim e não”, “lícito e ilícito”, ”justo e
injusto”, etc.
Do eixo genético ou da estrutura profunda, dizemos que eles são antes
de tudo princípios de decalque, reprodutíveis ao infinito. Toda lógica
da árvore é uma lógica do decalque e da reprodução. Tanto na Linguística
quanto na Psicanálise, ela tem como objeto um inconsciente ele mesmo
representante, cristalizado em complexos codificados, repartido sobre um
eixo genético ou distribuído numa estrutura sintagmática. Ela tem como
finalidade a descrição de um estado de fato, o reequilíbrio de
correlações subjetivas, ou a exploração de um inconsciente já dado
camuflado, nos recantos obscuros da memória e da linguagem. Ela consiste
em decalcar algo que se dá já feito, a partir de uma estrutura que
sobredecodifica ou de um eixo que suporta. A árvore articula e
hierarquiza os decalques, os decalques são como folhas na árvore. (DELEUZE e GUATTARI, Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 1, p. 21)
O rizoma, a outro giro, não pode ser interpretado como estrutura na
estrita acepção do termo, na medida em que seu caráter cartográfico
permite que seja explorado a partir de diferentes perspectivas por
diferentes observadores. Portanto, a apreensão rizomática pode ser
metaforicamente descrita como a leitura de um mapa: o mapa do decalque.
O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o
constrói. Ele contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio
dos corpos sem órgãos, para sua abertura máxima sobre um plano de
consistência. Ele faz parte do rizoma. O mapa é aberto, é conectável em
todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber
modificações constantemente (...) Entretanto, será que nós não
restauramos um simples dualismo opondo os mapas aos decalques, como um
bom e um mal lado? (DELEUZE e GUATTARI, Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 1, pgs. 21 e 22)
A resposta negativa para esta pergunta vem acompanhada da seguinte explicação:
O decalque já traduziu o mapa em imagem, já transformou o rizoma em
raízes e radículas. Organizou, estabilizou, neutralizou as
multiplicidades segundo eixos de significância e de subjetivação que são
os seus. Ele gerou, estruturalizou o rizoma, e o decalque já não
reproduz senão ele mesmo quando crê reproduzir outra coisa. Por isto ele
é tão perigoso. Ele injeta redundâncias e as propaga. O que o decalque
reproduz do mapa ou do rizoma são somente os impasses, os bloqueios, os
germes de pivô ou os pontos de estruturação (...) Existem estruturas de
árvore ou de raízes nos rizomas, mas, inversamente, um galho de árvore
ou uma divisão de raiz podem recomeçar a brotar em um rizoma. (DELEUZE e GUATTARI, Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, vol.1, p. 22)
Toda essa performance de descodificação e recodificação de estratos que
se sobrepõem uns aos outros mediante interestratos para formar
paraestratos é presidida por aquilo que Deleuze denomina “mecanosfera”, o
organismo transcodificador (ou sobrecodificador) dentro do qual as
relações de poder interagem semiologicamente através de uma espécie de
metalinguagem universal (anterior à relação significante-significado).
“É essa propriedade de sobrecodificação ou de sobrelinearidade que
explica o fato de não haver, na linguagem, somente independência da
expressão em relação ao conteúdo, mas também independência da forma de
expressão em relação às substâncias”. (DELEUZE e GUATTARI, Mil Platôs –
Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 1, p. 78)
Isso suscita a formulação de um problema, que pode ser assim enunciado:
Partindo do pressuposto habermasiano de que as democracias capitalistas
operam por meio da linguagem e que esta linguagem está sujeita a um alto
grau de risco de dissenso rumo à materialização do consenso, como
interlocutores, em sua maior parte destituídos da capacidade de entender
a dinâmica de processamento do regime democrático poderiam participar
ativamente da construção de significados de objetos dentro deste regime?
Ou, mais sucintamente: como uma metalinguagem a-significante poderia
gerar significados consensuais se, mesmo entre significados e
significantes não há uma simétrica correspondência, como conclui Deleuze
em Mil Platôs?
Como se percebe claramente, o problema da indagação reside antes, e
acima de tudo, na impossibilidade de se formular um problema cujo objeto
padece de uma sondagem no “plano de consistência” (ou planômeno), plano
este que a linguagem não consegue penetrar, exceto sob a forma de
desterritorialização.
O que chamamos de mecanosfera é o conjunto das máquinas abstratas e
agenciamentos maquínicos, ao mesmo tempo, fora dos estratos, nos
estratos e interestráticos. O sistema dos estratos, portanto, nada tinha
a ver com significante-significado, nem com infra-estrutura
superestrutura, nem com matéria-espírito. Tais oposições eram maneiras
de reduzir a um todos os estratos, ou então de fechar o sistema sobre
si, isolando-o do plano de consistência como desestratificação. (DELEUZE e GUATTARI, Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 1, p. 88)
O que nos torna possível identificar a mecanosfera sobrecodificadora com
o regime democrático é precisamente seu duplo grau de articulação.
Poderíamos, com Deleuze e Guattari, constatar que as democracias
capitalistas são uma lagosta, na medida em que é, por um lado, composta
por camadas de segmentos de estratos descodificadores, e, por outro, por
um continuum linear que recodifica o Ecúmeno em uma linguagem
metaestrática através de um complexo de máquinas abstratas e
agenciamentos maquínicos intermediários. Os interlocutores envolvidos no
processo político-deliberativo conhecem o primeiro lado da lagosta, mas
são completamente ignorantes em relação ao segundo, porque, como ficou
assente, a linguagem vai muito além da mera co-respectividade entre
significante e significado.
Destarte, se os interlocutores são incapazes de se comunicarem mediante
códigos polifônicos que trazem, em sua própria estrutura recodificadora,
uma infinidade de desdobramentos semânticos, é imperativo que também
sejam incapazes de exercer um domínio absoluto sobre o objeto
compartilhado intersubjetivamente no mundo da vida. Ao perseguir um
ideal de auto-legitimação das democracias capitalistas em que os
cidadãos possam se enxergar simultaneamente como autores e destinatários
das normas jurídicas, os democratas se olvidam que por trás desta
fachada existe um universo de questões não respondidas e/ou
problematizadas de maneira deficiente.
O rizoma tende a se tornar cada vez mais complexo na medida em que o
intérprete da realidade sócio-política vai se aprofundando no
destrinchamento de aspectos filamentares de sua configuração
mecanosférica. Daí ser razoável inferir que os democratas, com o afã de
entenderem o funcionamento das instituições democráticas, acabaram
abdicando da visão de conjunto, deixando de remeter alguns efeitos
centrais a causas mais remotas ou periféricas que, aliás, não podem ser
conhecidas sem que se faça menção a outros centros de outras periferias,
uma vez que todo e “qualquer código [é] afetado por uma margem de
descodificação” (DELEUZE e GUATTARI, Mil Platôs – Capitalismo e
Esquizofrenia, vol. 1, p. 67). Nas palavras de Deleuze e Guattari: “da
camada central à periferia, depois do novo centro à nova periferia,
passam ondas nômades ou fluxos de desterritorialização que recaem no
antigo centro e se precipitam para o novo. Os epistratos se organizam no
sentido de uma desterritorialização cada vez maior”. (DELEUZE e
GUATTARI, Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 1, p. 67)
Nesse diapasão, quando Habermas aduz que os argumentos veiculam
pretensões de validade binária por envolverem a tomada de decisão em
termos de sim ou não, ele o faz pegando de empréstimo postulações
linguísticas que são de per se defeituosas por pressuporem a
inequivocidade da correlação entre significante e significado, o que,
consoante ficou assente, não se verifica, porque os códigos linguísticos
carregam um potencial descodificador em seu próprio arcabouço
semântico. Se, por um lado, podemos dizer que as democracias
capitalistas possuem um caráter rizomórfico por operarem a partir de uma
justaposição de estratos vocacionados para a estruturação do Ecúmeno,
por outro é lícito constatar que, em instância mecanosférica, os
metaestratos retiram a linguagem do domínio dos interlocutores,
impossibilitando a atribuição de significados a objetos indeterminados.
Poder-se-ia contra-argumentar, com Habermas e Bobbio, que a atribuição
de significados a objetos tem a ver mais com as “regras do jogo”
consensualmente estabelecidas pelos participantes da experiência
comunicativa do que com o propósito linguístico dos atos de fala
orientados para fins de esclarecimento. Mas isso só reforçaria a tese de
que o sentido das democracias contemporâneas se esgota em uma
assimilação do real por aparelhos virtuais de sobrecodificação nos
labirintos rizomórficos do esquizo. Se a psicologia define como loucas
pessoas inconscientes de seu estado de loucura, podemos deduzir, por
analogia, que os democratas são esquizofrênicos pelo simples fato de
desconhecerem a realidade que eles tão apaixonadamente alegam defender.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De todo o acima exposto, conclui-se que a universalibilidade e
indeterminabilidade de conceitos como “direitos humanos” e “democracia”
têm servido para a legitimação de reiteradas atrocidades no marco de uma
pós-modernidade veladamente totalitária, tendência que já havia sido
diagnosticada por pensadores da envergadura de Alain de Benoist,
Alasdair MacIntyre, Alexandr Dugin e por toda a plêiade de
tradicionalistas em sentido estrito, cujo pensamento constitui
importante contra-ataque às postulações habermasianas e ao engessamento
de discussões acadêmicas nos circuitos institucionais “democráticos”.
Se, por um lado, o inatismo dos direitos humanos legado ao ocidente pelo
século das luzes erige-se como blindagem de hiperpotências globalistas
em instância transnacional, a tese que preconiza a existência de um
Estado de Direito pretensamente democrático, por outro, vem surtindo
efeito análogo em seara nacional. Juntos, funcionam como instrumentos
hábeis a garantir a incolumidade da hegemonia pós-liberal na plataforma
geopolítica de uma ocidentalidade cada vez mais fragilizada em termos
políticos, espirituais, filosóficos e existenciais.
Pode-se, sem exagero, predizer que o ocidente se auto-aniquilará a
partir de seus próprios mecanismos de articulação, que operam em nível
sub-molecular; e, quando todas as possibilidades de reversão deste
quadro catastrófico houverem esgotado, a civilização ocidental já não
poderá recorrer ao materialismo, ao humanismo e à razão cartesiana para
perpetuar sua auto-legitimação através das eras, tampouco lhe será
possível utilizar inimigos externos como bodes expiatórios para a
reiteração do seu fracasso ontológico. Ninguém precisará mover uma palha
para derrubar as democracias e os direitos humanos de seu pedestal,
posto que eles próprios se encarregarão de tal mister.
Destarte, o que era para ser uma guerra de trincheiras entre pólos
antagônicos se converte paradoxalmente na neutralização autofágica de um
organismo pretensamente superior à própria história, que terminará,
mais cedo ou mais tarde, sendo engolido por ela.
_________________________________________________________________________
(1) De Benoist, ALAIN. Para Além dos Direitos Humanos. Editora Austral, Porto Alegre, 2013. (2)Idem.
(3)Idem.
(4)Idem
(5)Sources of the Self: The Making of Modern Identity, Harvard University Press
(6)Kant, IMMANUEL. Crítica da Razão Pura, Livro II, Cap 2, Editora Vozes.
(7)De Benoist, ALAIN. Para Além dos Direitos Humanos. Editora Austral, Porto Alegre, 2013.
(8)Idem.
(9)De Maistre, JOSEPH. Considerações sobre França, Editora Almeida.
(10)MacIntyre, ALASDAIR. Depois da Virtude: um estudo em teoria moral. Editora EDUSC.
(11)Idem.
(12)Idem.
(13)Idem.
(14)Idem.
(15)Ibidem.
(16)Idem.
(17)Idem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGFRÁFICAS
DE BENOIST, Alain. Para Além dos Direitos Humanos. Editora Austral: Porto Alegre, 2013.
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ŽIŽEK, Slavoj. Bem-Vindo ao Deserto do Real. Boitempo Editorial: São Paulo, 2003.
ŽIŽEK, Organos sin Cuerpo – Sobre Deleuze y consecuencias. Pre-Textos: Luis Santángel, 2006.
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DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política. Editora Austral: Curitiba-PR, 2012.
EVOLA, Julius. Revolta Contra o Mundo Moderno. Publicações Dom Quixote: Lisboa, 1989.
GUÉNON, René. Crise do Mundo Moderno. Clube do Tarô: São Paulo, 2007.
DEVI, Savitri. O Relâmpago e o Sol. ATWA Brasil: 2011.
AGAMBEN, Giorgio. O Que é o Contemporâneo. Argos: Chapecó, 2009.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 1. Editora 34: São Paulo, 1995.
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